Leitores, amigos, imaginários,
Estou desordenada pelos primeiros dias da recém-nascida. Este pequeno animalzinho que pari, que chamo de Íris, tem transformado meu pensamento em vários pedaços de vidro, de vídeo, de sonho e de componentes que vão ficando pelo caminho.
Meu vocabulário já mudou, está encurtado, não vai longe, não. Ele mede a distância de uns 20 cm, que é mais ou menos a medida entre meu olhar e o olhar do bebê.
Há duas semanas, minha vida é contada em domingos. Há dois domingos, eu estava grávida, e agora essa lembrança é uma experiência remota. A gravidez remonta a um passado, uma individualidade encerrada, uma vida que só irei assistir através de um aparelho de DVD ou em VHS, algo dessa ordem.
A vida se divide em antes e depois do cheiro da cabeça da minha filha.
Tivemos um nascimento rápido. Digo “rápido” porque foi assim em termos cronológicos; mas, dentro de mim, foi uma incursão lenta por uma floresta noturna. Abri pouco os olhos desde que entrei em trabalho de parto, e, lá dentro, eu não era matéria.
Tentei perceber todas as informações da minha musculatura, porque o corpo da mulher e o corpo dentro de mulher, entram em comunhão para que exista um nascimento. Basicamente o meu papel era consentir para que essas forças biológicas executassem seu oficio. Milhões de anos onde viemos ao mundo assim, por este misterioso canal de prazer.
Ninguém consegue explicar o que acontece na escuridão de uma mulher parindo. Foram, no mínimo, uns quatro blocos de notas inúteis por aqui, e ontem uma amiga disse que também não conseguiu escrever sobre o parto dela: “Talvez porque só nascer e morrer sejam algo parecido.”
No hospital
Filha,
fomos transferidas para o quarto, espaço onde receberemos visitas e, se tudo der certo, em dois dias estaremos liberadas com alta. Você está em um berço de acrílico transparente, posicionado ao meu lado. Estamos nuas, apenas protegidas pelos lençóis com o logo do hospital, que nos enrolaram. Você dorme profundamente, eu encosto minha mão no seu corpo.
Peço ao Pedro para buscar nossas roupas no carro. Não tivemos tempo de descer as malas, nem de ouvir a playlist que montei para o momento do parto. Quando ficamos só eu e você, dou play em uma das canções, e então toda a galáxia se torna um cobertor que derrete sobre nós, e eu te amo sem fim.
"Mas agora eu quero tomar suas mãos
Vou buscá-la aonde for
Você não conhece o futuro
Que tenho nas mãos."
Elipse
No meu pulso está escrito “risco de queda”, mas eu já estou caindo há horas.
Fico assistindo você respirar. Tenho dor em toda a musculatura, e meu corpo murcha. A pele da minha barriga parece um fino papel. Me acho adorável.
Quando recebemos alta, ficamos esperando uma última enfermeira passar. Eu estava cansada do formato da cama hospitalar, então deitei no sofá duro de visitas, com você completamente aninhada ao meu corpo. Vivemos o mesmo encaixe da gestação, mas agora com os corpos do avesso. Em silêncio, te conto que estamos deixando os palcos do hospital. Vou sentir saudade do nosso ato, das nossas primeiras horas. Prevejo que essas memórias ficarão turvas com o tempo, então nos despedimos para o momento novo, em que iremos para casa.
11 dias de vida
Íris,
agora tudo é pequeno. Te deixo dormindo e lavo a louça; os potes menores falam a mesma língua que você. As ervas da varanda, a bola da cachorra... Itens que reverberam pequenez pertencem ao mundo recém-inaugurado pela sua existência.
Falamos a língua dos sussurros.
15 dias de vida
Estou exausta.
Fragmento,
e continuação.
Não durmo como antes, talvez nunca mais durma. Mas, em poucas horas, recarrego uma bateria para seguir cuidando de você.
Passamos a madrugada acordadas. Deixo rolar as minhas músicas, Nina Simone te nina.
Vemos o dia amanhecer na janela, você finalmente dorme.
Eu durmo picado. Acordo muitas vezes assustada, te procuro na cama e me esqueço que você está protegida no colo do seu pai.
Todos os seus traços, suas linhas, seu cheiro, seu olhar são feitiços para que eu siga devota.
Mesmo sentindo sono, atropelo, peitos doloridos, olheiras e confusão mental; meu coração nunca tinha pego tanto fogo antes.
Vivemos uma meditação ativa. Não vejo o calendário passar, exclusivamente atenta e observando sua sobrevivência.
Acho a maternidade insana, ao mesmo tempo que finalmente a compreendo. Não há nada comparável, não há amor equivalente, porque ele parte de uma raiz medular indestrutível.
16 dias de vida… Hoje?
Tenho poucos minutos, preciso descansar. Mas precisava vir aqui contar que a Íris nasceu. Um beijo.
PARA SE QUEIMAR
Uma música que me cuida:
Corre um rio em mim - Alessandra Leão
Um documentário que não terminei de assistir porque a Íris nasceu:
Um livro que estou lendo mas ainda não entendi se é bom:
Só o começo dessa aventura, parabéns por essa nova vida que começa!
Que lindo, Belisa!