Uma janela acesa
no meio da noite,
sou eu.
Final de semana
Viemos passar o meu aniversário na casa da minha mãe, na cidade onde nasci e vivi até os meus dezenove anos. Foi a viagem mais longa que fizemos desde que a Íris nasceu; calculamos a rota considerando, agora, as necessidades de um bebê de quatro meses.
O percurso é reto; eu ainda viajo com ela no banco de trás e nos encaramos em mútuo aprisionamento. Eu leio Herman Hesse, a Íris aperta a orelha do coala de pelúcia, e o Pedro dirige escutando seus Descobertas da Semana no Spotify. Às vezes conversamos; eu pergunto se Bonobo se tornou, ou se tornará, algo exclusivo da nossa época.
Na parada do Graal, utilizamos o banheiro da família — um mapa desbloqueado na nossa nova fase do videogame. Comemos pão de queijo na chapa, um café expresso com gosto de pneu, enquanto pessoas tiram selfies com a decoração de festa junina, cheirando a plástico empoeirado.
Aviso no grupo da família, diversas vezes, o nosso horário de chegada e, embora reações de “jóinha” estampem minha mensagem, não há ninguém em casa quando interfono. Sinto muito calor, estou vestindo roupas erradas e odeio o mundo. Tenho vontade de picotar o que visto com uma tesoura, enforcar alguém, entrar no freezer. Antes que eu ficasse apenas de sutiã de amamentação na rua da vila industrial, minha mãe surge.
Ela está ansiosa, confusa; abre o portão da garagem, coloca o controle no bolso e esquece, narra ao vivo os próprios pensamentos, mal espera que entremos e já quer arrancar a Íris do carro. É a mesma coisa quando encontro a minha sogra: elas ficam enlouquecidas; ser avó deve ser mesmo um paraíso alucinatório.
Arroz, feijão, carne moída com batatinha, ovo frito e uma banana do lado para comer junto — o prato que me espera todas as vezes que chego. Os gatos cheiram o bebê, cheiram as malas, abençoam nossas pernas com seus pelos. Pergunto se tem refrigerante; só tem suco. Eu pego o suco na geladeira, mas:
— Você quer refrigerante?
— Não, não precisa.
— Eu vou ali na esquina e pego pra você, é rapidinho.
— Não, imagina, eu vou tomar esse suco, tá ótimo.
— Mas eu vou ali em dois palitos, que refrigerante você quer?
— Não, não esquenta.
— Jefferson, vai lá buscar refrigerante pra menina.
— Gente, não precisa.
— Mas é aqui do lado, abriu um lugarzinho aqui na esquina.
— Pelo amor de Deus, só sentem e comam comigo!
Pronto, minha adolescente apareceu: chegamos.
A Íris estranha e ama o berço portátil, gira o corpo em todas as direções. Há dias que não durmo, por causa de uma infecção de garganta, então eu e o Pedro criamos uma atmosfera longa no quarto para que ela sinta a presença familiar, se acomode no seu pequeno acampamento e nos deixe dormir esta noite.
O Pedro me pergunta quantos anos eu vou fazer mesmo e como eu estou me sentindo; respondo que não sinto junho, não sinto mais os meses. Há quatro meses que eu não durmo “para mim”, em que o sono é uma roleta-russa, seja onde ele queira me levar. Perdemos bastante a nossa identidade ao abrir mão do gozo de uma manhã estirada na cama, boiando o corpo no mar sem gravidade do colchão.
Por isso, digo também a ele que não sinto que seja meu aniversário, não pesa nada. É uma pena bonita de passarinho que eu vou encontrar no asfalto e sorrir, que dia de sorte, por sinal: meu aniversário. O Pedro me observa, e eu me dou conta de que vou demorar.
— Você acredita que eu possa voltar? Que serei eu novamente?
— Claro.
— Você me espera voltar?
— Eu espero. — Sorri, com a expressão que eu conheço há oito anos: a cara de quem sabe que estou criando uma atmosfera dramática, com perguntas cheias de leite condensado.
Peço para dormir no quarto sozinha com ela, em caso de estranhamento do berço na madrugada, e assim a coloco ao meu lado, sem provocar torcicolo em ninguém. Dormimos.
Despertei às duas da manhã sob um ataque de pernilongos; confiro o horário no celular e vejo a minha data: feliz aniversário. Não consigo dormir mais — resto de bactérias na garganta, e a sensação de passado da casa. Sou uma criança com a sua boneca dormindo no bercinho. Durmo pouco, reconheço a insônia e nem brigamos, pois, há quatro meses: uma janela acesa, no meio da noite, sou eu.
Pela manhã, uma mesa com café me esperando. Cappuccino doce, broa de fubá, pão de queijo e bolo de cenoura, mas eu começo pelo mamão. Meu padrasto deixa um bilhete onde repetiu a palavra especial três vezes.
Dirijo até o parque esportivo: quero sentir minhas pernas caminharem ao lado do carrinho; onde moro não tem parque, não tem pista. É um dia ensolarado, com sinfonia de vento na copa das árvores e teto azul — como diz minha grande amiga: “você pode falar mal da nossa cidade, mas nunca mal do nosso céu”. Um outro amigo escreveu uma música dizendo que o pôr do sol é tão redondo e bege, que lembra um bojo de sutiã.
Embaixo das árvores formamos uma sequência de borrões brilhantes, que eu enxergava mesmo de olhos fechados. Vontades e interesses para o meu novo ciclo foram ditos por mim em voz alta, na corrente de ar que levantava poeira marrom. Agora, pouquíssimo tempo depois deste instante que descrevo, eu me emociono e descanso nessa imagem.
No almoço, encontro meu irmão; uma mesa redonda reservada em meu nome. Minha família brinda sem mim, porque seguro a Íris e não estou tomando vinho. Depois vamos para casa, organizamos uma mesa de café da tarde para receber minhas tias, que irão conhecer a bebê pela primeira vez. Descubro que minha família convidou mais pessoas, ignorando meu pedido, mas preservando a imagem deles. Tarde demais.
Durante a arrumação, minha mãe e a cunhada discordam sobre em qual superfície devem ficar as comidas. Eu concordo com a tia, e a minha mãe me mostra o dedo do meio e a língua quando ninguém está olhando.
No meu celular apitam mensagens de aniversário; os convidados chegam com os presentes que eu sempre acabo pedindo para facilitar a vida deles — e a minha: hidratante e pijama. Meu cérebro não aproveita nada; fico na contenção das mãos e bafos que estão indo na direção da Íris, enquanto interpreto um excelente papel de mamãe segura.
“Eu não imaginava que você seria uma maezona”, minha madrinha me diz, e eu demoro para processar, enquanto mastigo o oitavo pedaço de bolo. O que ela imaginava? Será que é porque tinha desenhos de caneta bic nas minhas Barbies?
Depois de boas doses de café e cachaça mineira, as pessoas começam a falar de maneira cruzada, sobrepondo diálogos em que ninguém verdadeiramente se escuta. Reparo nos olhos das irmãs da minha mãe — o mesmo azul da íris da Íris. Na sala, um grupo tenta aniquilar os pernilongos, arremessando almofadas no teto, manchando de sangue a parede branquinha. Ligamos o ventilador como última tentativa de sobrevivência às picadas do inseto, que não combina com o frio e obriga os convidados a falarem ainda mais alto.
A essa altura do evento, eu já não pertenço. Tantas vezes me forcei a existir na fuga destes ruídos; eu e meu irmão crescemos nesse ecosistema, com uma angústia secreta, juntando cadeiras em aniversários e casamentos para dormirmos embaixo da mesa, no império de música e bebidas. Traumatizados até hoje com o volume alto e a desatenção crescente dos adultos sobre nós.
É a primeira vez que estou aqui ocupando um novo papel, sem o peso da palavra “filha”. A filha da filha sustenta a minha transparência. Gosto de poder estar oculta no protagonismo da criança; levo a Íris para o quarto e não preciso justificar a ausência. Pergunto ao meu irmão e à minha cunhada se eles lembram que, quando éramos crianças, em dia de aniversário, era comum diagramar os presentes em cima da cama, para todas as crianças verem o que você ganhou, e o papel amassado do embrulho era arremessado embaixo — diziam que isso atraía mais presentes. Destravo essa recordação em todos nós. Cada um, em silêncio, foi até a imagem das próprias mãos infantis, colocando determinado objeto em cima da cama, seguramente vestida com a melhor colcha naquele dia. O Pedro não reconhece esse costume; onde ele cresceu, os presentes eram deixados no canto da sala.
— Mas vocês ficavam exibindo os presentes para outras crianças?
— Sim.
E, para mim, isso explica todo o comportamento interiorano: dirija carros caros, tenha luzes no cabelo, dentes ilogicamente brancos, fotos de resorts no Instagram. Uma extensão da apresentação de nossas camas em dia de aniversário.
Meu dia está quase chegando ao fim. Sinto a noite da cidade, que é sempre a mesma noite, com oxigênio fresco e casas descansadas. Não li as minhas mensagens, não atendi telefonemas, mas acabei recebendo a ligação da minha sogra, que disse as palavras mais coerentes do dia. Fala brevemente sobre metamorfose, descamar, transmutar e ciclos lunares — o que me faz notar que troquei mesmo de pele. Deixei pelo caminho uma película fina e transparente, igual cobra deixa sua capa no mato, e sigo serpenteando.
No domingo eu recebo a Bruna, a minha amiga mais antiga que nunca precisamos alterar a nossa configuração. Ela e Íris se apresentam, se tornam amigas também. Quantas vezes em nossos quartos escuros, eu e a Bruna, mergulhadas em divagações do futuro, já visualizávamos que, um dia, alguma de nós seria mãe, e os filhos seriam a extensão de todas os nossos traquejos.
Um dia escrevo sobre a a Bruna, sobre ser Ford Scort XR390, sobre cursos de massagem, cravos, video locadora, e icq. Estou finalmente descansando e portanto, escrevendo menos. Feliz aniversário para mim.
Beijos (esse mês tem mais, me prometi que vou publicar com frequência, ainda que curto, ainda que ruim, ainda que sem conferir concordância e pontuação, e eu posso estar me enganando, se engane junto de mim).
PARA SE QUEIMAR
Uma série maravilhosa (não confie no primeiro capítulo) - queria nunca ter visto para ver novamente:
Fleishman is in Trouble
Uma cantiga do Thiago Amud, na voz do Caetano que eu fiz a arte pro vídeo clipe
Cantiga de ninar o mar - Thiago Amud
Feliz aniversário, Belisa! A cama de presentes é um clássico. Agora vou ali pegar um refrigerante para você.
Texto lindo de ler! Nenhuma experiência é individual mesmo, dá pra trocar uma coisa ali, outra aqui e tcham: temos experiências que se repetem em novos cenários e com outros atores. Espero que você se reencontre se assim desejar. Parabéns pelo aniversário!