Parte 01 - A ilha e o hospital.
Em 2019 a Bianca me escreveu uma mensagem contando que ela precisava vir para o Brasil acompanhar uma complexa cirurgia de seu pai.
Ela morava há um tempo na Alemanha, foi para lá logo que nos formamos na faculdade de Cinema para trabalhar com animação.
No mesmo instante em que ela me comunicava um evento de angústia, ela me fez também um convite: passar alguns dias com ela numa ilha na Bahia, antes da data em que o pai iria encarar a cirurgia.
Nem a Bianca, nem a Bahia, faziam parte da minha vida naquela época. Nós duas conversávamos pouco, sua ida pra longe nos manteve naturalmente distantes apesar da consideração permanente. De certa forma, éramos conhecidas-desconhecidas. Eu era diretora de arte de filmes de publicidade, virando noites estúpidas em estúdios, comendo o que tinha de mais caro no ifood, me transportando em uber black pela cidade; e agora minha amiga, que tinha se mandado para outro continente, me incitava uma viagem.
Não tinha como dizer não àquela proposta.
Viagem de avião, viagem de balsa, viagem de carro, viagem de barco, viagem de quadriciclo. Sensação de que eu me escondi do mundo dentro do próprio mundo. Na nossa primeira noite na ilha, sob aquele cobertor estrelado no céu, eu fazia perguntas para a Bianca, tentando soltar os seus fios calados de quem viveu muita solidão na Europa. Entrevistei ela para reconhecer o que ainda existia no coração e contar sobre o que me transformei também.
Fomos reconhecendo os abismos, os buracos, os morros e principalmente, a nossa percepção da própria geografia interna. Naquela viagem nos redescobrimos.
Voltei da Bahia determinada a mudar de emprego e de cidade, porque a vida só seria vida para mim se parte das revelações que nos vieram na Ilha, pudessem continuar existindo.
Pouco depois o nosso cenário de fundo agora era outro; sabor branco luminoso e triste de um hospital. Sentadas na lanchonete, a Bianca tentava lidar com o destino do pai. E eu cito essa imagem porque tudo começa a germinar naquele ponto. Com o computador dela sob uma mesinha de mármore, ela estava inscrevendo seu último roteiro de animação dentro de um edital. Ela ficava lendo em voz alta para mim testando coerências e eu jamais poderia imaginar que anos depois a minha vida estaria emaranhada por aquele projeto, o “Casca”.
Parte dois - Quando a vida decide por nós
A Bianca se despediu do pai, dias de luto em um lugar que já não parecia ser sua casa. Em paralelo, eu organizava a minha despedida de São Paulo, o desejo que a ilha sussurrou em mim estava realizando, ainda que eu não soubesse como largar meu trabalho.
Exatamente neste nosso modo suspenso aconteceu a grande interrupção de nossa era: um vírus.
Na pandemia a Bianca ficou impossibilitada de retornar para a Europa e por isso permaneceu no Brasil e eu, impossibilitada de trabalhar com publicidade, finalmente um tempo de bandeja para buscar outro tipo de ofício: o desenho.
As duas se adaptando a uma espécie nova de destino.
Pouco tempo depois a Bianca foi contemplada com o “Casca” em uma residência artística na Dinamarca. O programa estava sem definição da data de início, por conta da instabilidade do coronavirus e ela resolveu passar alguns dias na Ilha. Como descanso, como férias, algo como 15 dias de pausa.
Parte três - Cada uma em seu paraíso
Os dias na ilha viraram meses. A Bianca europeia se tornou uma versão bronzeada que sorria muito. Eu consegui criar um ateliê no útero da casa nova. Meus desenhos tinham se tornado livro, matéria, tatuagem e outras asas. E o que estava bom ficou mais interessante: nós duas pegamos um projeto juntas, um video clipe no qual eu criei as composições visuais e ela fez a animação.
Era essa a textura de sonho que as coisas tinham. Eu estava participando de projetos artísticos dos quais acreditava, diretamente da minha casa no mato em parceria com a minha amiga, morando há quilômetros de mim no seu quintal iluminada, na ilha que amávamos. Estava cada uma em seu paraíso pessoal.
Assim que eu pude eu a visitei, e duas crianças foram vistas brincando no mangue. Duas adolescentes choraram no rio. Duas adultas foram resgatadas por um barco e duas idosas gargalharam no mar.
Parte quatro - Doce ilusão
Depois de alguns projetos em conjunto, a Bianca me apresentou o que seria ainda mais céu para nós duas: fazermos o “Casca” juntas.
E o que era o “Casca” afinal? O Casca é a história da Kashia, uma castanha de caju, que vive em uma ilha tropical brasileira. Ela observa os cajus mais maduros caírem e rolarem na areia em direção ao mar e admira os pássaros que transitam em liberdade no céu, enquanto ela se sente atada e presa na sua casa-casca.
Um dia ela se solta por conta de um ataque do Carcará e é lançada por uma tempestade massiva para o outro lado do oceano.
A Kashia pousa em outro continente, bem no meio de imponentes bétulas europeias, longe de sua exuberante floresta tropical. Nesse cenário frio e excêntrico, ela terá que encontrar maneiras de se conectar e aqui que a magia acontece, mas deixo isso para o filme contar.
Roteiro e direção da Bianca, direção de arte e ilustrações da Belisa. Agora éramos essa dupla assinando um projeto autoral e maior, sonhando com o futuro a partir dele. Inocentes.
Quando eu idealizei ser artista, eu jamais imaginei a dor. Existe um vazio financeiro se você não conta com algum dinheiro dos seus pais e, existe uma eterna condenação do seu fazer. O trabalho é um papel em branco infinito qual você pode rasgar, pintar, se deitar, filmar, gritar, o que você quiser; e dentro do que parece ser um espaço de completa liberdade de criação, você encontra a pior autoridade do mundo: você.
É possível passar a vida inteira tentando desvendar o seu próprio processo criativo e possivelmente, ele será bem individualizado.
Eu e a Bianca descobrimos processos opostos, além de eu estar sob o comando de uma narrativa que havia brotado dela e minimamente, eu deveria corresponder parte da sua lógica e do seu imaginário. Ela pensava e racionalizava para apontar a direção, e eu operava no sentido inverso, eu fazia e fazia, assim a coisa se apontava para mim. Sim, é confuso, porque estávamos fazendo um filme subjetivo e abstrato, e você já viu duas abstrações se espelharem? A raiz disso é intangível.
Nossa amizade se tornou uma zona de conflito, cada uma lidando com a própria frustração. Minha amiga se tornou um muro que eu queria evitar, e eu não sabia mais ser eu nas nossas ligações.
Tentamos nos encontrar pessoalmente, não funcionou. Paramos de nos falar por um tempo, funcionou um pouco. Insistimos.
Eu nunca pensei em desistir, embora isso pudesse me livrar de tantos embrulhos, e mais de dois anos depois com o filme finalmente pronto, eu entendo que aquele dissabor tinha mesmo um propósito.
Última parte : Casca - o projeto
Enquanto essa dança entre dois corações pensantes erravam na coreografia, o filme coexistia.
Tanto eu quanto ela, queríamos olhar para onde ninguém estava olhando. Nós não idealizamos algo que já tínhamos visto; criar a identidade visual do filme era um compromisso com uma imagem original.
Se a nossa personagem era uma semente de caju, então eu queria olhar um cajueiro através de um microscópio.
Folha de cajueiro vista com um microscópio que comprei na internet
Depois de várias tentativas explorando as padronagens de vegetações e vegetais, nós não sabíamos muito o que fazer com isso. Mas segui pretensiosa, ainda que tudo permancesse nebuloso.
Cortes de vegetais que se tornaram carimbos, e depois escaneados para virar padrões digitais.
Existiam duas árvores principais na nossa história: um cajueiro, que era a casa da Kashia e as Bétulas, que seriam as árvores encontradas pela personagem depois de atravessar o oceano.
As duas árvores são indiscutivelmente diferentes, enquanto o cajueiro possui troncos retorcidos e se espalha sem limites pelas laterais, as bétulas são árvores compridas e altas, com uma força vertical.
O cajueiro eu encontrei nas raizes que fui colecionando no meu quintal, e as bétulas eu criei um carimbo com o galho de uma alfazema brasileira.
Era nesse frenesi que eu ia montando o cajueiro no photoshop depois de fotografar as raizes.
Do carimbo para o papel, do papel para o computador. Nunca imaginei que eu construiria a ilustração de uma floresta assim.
Este mês estamos lançando o making of dessa insanidade artística e emocional que sofremos. Precisávamos compartilhar tudo aquilo que encaramos. Todo projeto tem fantasmas durante o processo.
O que escrevo aqui foi o que a minha memória decidiu tecer ao longo do texto e a Bianca fez o mesmo na sua newsletter “Vai pra onde?!”. Há pouco tempo ela começou a escrever ali suas impressões e ecos tão profundos de quem vive há quatro anos na ilha. Cá estamos as duas, colocando palavras e voz no mundo.
Esse texto é pra ela, que depois de termos visto as sombras de cada uma, seguimos unidas, quebrando cascas.
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PARA SE QUEIMAR - DICAS RELACIONADAS AO “CASCA”:
Uma exposição:
Paisagens Ruminadas - Luiz Zerbini
Esse ano conheci o trabalho do Zerbini e tracei muitos paralelos com a paciência do olhar para as padronagens da natureza que fui utilizando no filme.
Um disco:
Aquariussssss - Carlos Niño & Friends
O disco que mais ouvi durante os dias e noites enfurnadas no ateliê.
Duas Artistas que trabalham com animação:
Emily Scaife
A Scaife nos serviu muito de inspiração, vale a pena assistir os making ofs dela
Aqui estão os trabalhos lindos da Bianca, alguns deles eu fiz em parte mas, como sempre, ela tem um site organizado e didático, enquanto o meu é incompleto e confuso.
Que história bacana!
estou completamente arrebatada por tudo isso.